Às vezes dizemos que alguém é «vulgar», por não ter nada que a distinga sobremaneira, por passar despercebida entre as outras pessoas, por não «aquecer nem arrefecer». Mas há as outras, aquelas a quem chamamos «cromos» mas que eu prefiro classificar como «raras».
O meu avô materno era uma pessoa rara:
- Nasceu nos anos 20 e foi jornalista toda a vida, passando incólume pelos tempos da ditadura e entrando na democracia sem problemas. Lá em casa nunca percebemos bem como se safara. Se por um lado parecia estar do lado do regime, trabalhando em órgãos de comunicação com ele conotados, a verdade é que o 25.04 o deixou ileso. Ou não tinha mesmo nada a ver com o antigamente ou era muito habilidoso.
- Quando se reformou do Diário Popular, onde no final de carreira já só escrevia sobre viagens, continuou a fazer colaborações nessa área. Por brincadeira, chegávamos a dizer que viajava mais do que o Papa e do que o Mário Soares. A ele devo a minha escolha pelo curso de Jornalismo, que acabei por quase não exercer.
- Adorava fotografar, sobretudo as paisagens dos sítios por onde andou. Costumava exagerar na quantidade de fotografias que tirava mas gostava de as mostrar todas, o que por vezes nos aborrecia monumentalmente. Ainda estão todas em casa da minha mãe, à espera que eu ou ela um dia as cataloguemos.
- Fumava muito, às escondidas da minha avó. Lembro-me de estar com ele na sala, de a minha avó entrar e de ele esconder o cigarro atrás das costas, com a cinza a cair para o chão e o fumo a aparecer lá atrás. Como se ela não reparasse.
- Bebia muito e também às escondidas, sempre whisky que o deixava muito chato.
- Vestia sempre fato e gravata. À mesa, ao fim-de-semana ou de férias, nunca deixava de estar sempre aprumadinho, como se fosse entrar ao serviço no minuto a seguir. Há imagens dele no Egipto, com 40 ºC, no meio de um grupo de calções e T-shirt. Qualquer pessoa o identificaria de imediato. De fato e gravata, pois claro.
- Dava grandes «secas» a quem quer que lá fosse a casa. Sobre viagens, sobre pessoas que tinha conhecido, sobre acontecimentos que tinha coberto. Lembro-me por exemplo de uma viagem que fez no porta-aviões norte-americano Forrestal, de ser amigo do motorista de Salazar e da dentadura que saltou borda fora um dia antes de se encontrar com Nino Vieira. Por vezes já nem o ouvíamos, só queríamos uma brecha para sair dali. Mas hoje tenho pena e saudades, gostava de ter registado de alguma forma todas as histórias que tinha para contar.
- Em 2001, deitou-se sem nenhuma maleita ou doença que o afectasse, e aos poucos foi recusando comida até que, numa semana, morreu. Desistiu de viver e teve todo o direito a isso.
Fica aqui uma homenagem que dentro em breve estará pendurada numa das paredes da minha casa - o Vôvô no Largo Carmo a 25.04.74. Tinha sido avô há pouco tempo.