1 de julho de 2013

O que é compreender

A propósito de uma conversa um pouco dura que tive há dias, chegou-me às mãos este texto através de uma pessoa muito querida para mim. É um texto longo, mas que acho que deve ser lido com atenção por cada um de nós, interiorizado e posto em prática sempre que possível. Eu tento colocar-me na pele do próximo, mas como não consigo «ser» o próximo nem sempre o compreendo como devia...

O que é compreender
Por José Tolentino de Mendonça, Expresso, 29.06.13

    Não sei se chegamos a compreender. Temos experiências, temos acesso à catadupa dos factos, possuímos milhentas explicações. Recorremos a fórmulas que encaixam e desencaixam. Baseamo-nos em pareceres. Vivemos em ansiedades que o tempo modela, fazendo-nos pensar que as modera. Tudo isso.
    Mas não sei se chegamos a compreender verdadeiramente. Talvez porque compreender verdadeiramente seja outra coisa, peça de nós outro tempo, distinto daquele que estamos habituados a usar, nos exponha na nossa pobreza, encaminhe a nossa inteligência e o nosso coração por territórios porventura mais próximos do silêncio do que da palavra.
    Penso muitas vezes naquela pintura de Goya que retrata um cão. Não sabemos exatamente o que é que o cão está ali a fazer: apenas o vemos o seu focinho que sobressai, solitário, projetado num céu vazio. Dir-se-ia que ele fareja não já o mundo mas a fronteira do mundo, à maneira de um detetive metafísico. Quando penso nesse cão de Goya acontece-me associá-lo a uma frase de Maria Gabriela Llansol sobre o trabalho de compreensão de um texto  (que não há de ser diferente do trabalho de compreensão do mundo e de nós próprios). A frase diz: «Compreender um texto é como compreender um cão.../ ou seja,/ é aceitar que não se fala,/ que se não compreende, exceto pela companhia.»
    Armámo-nos de instrumentos sofisticados de análise, estratificamos, decompomos, observamos, através de lentes que reputamos infalíveis, e esquecemo-nos desta verdade básica: a compreensão passa, necessariamente, por um avizinhamento, por uma descoberta mútua que só a reciprocidade vai tecendo e aclarando. A compreensão é um jogo jogado na consciência de que estamos perante o vivo, que se dá a ver na dobra, no intervalo, na interação afetiva, na dedução incalculável daquilo que cada um traz escondido, sem nos deixarmos capturar pelas expectativas, sem impormos nada do que sabemos ou pretendemos saber.
    Llansol tem razão: não compreendemos nada nem ninguém, exceto pela companhia. Há três dimensões fundamentais (e esquecidas) na arte companhia que importa recordar: a gratuitidade, a aceitação e a capacidade de partilhar o silêncio. De facto, a companhia pode ter até finalidades secundárias que dependem das circunstâncias, mas ela precisa, no fundo, de não ter outro fim que ela mesma. «Foi o tempo que perdeste com a tua rosa que tornou a tua rosa tão importante para ti.»
    Quer dizer: temos de aceitar «perder» para que a relação valha. E perder é mesmo perder: não só tempo, mas também representações prévias, aspirações, projetos, utilidade, vida. O objetivo é poder alcançar aquela plena liberdade  da definição que Montaigne propõe: «Se me intimam a dizer porque o amava, sinto que só o posso exprimir respondendo: Porque era ele. Porque era eu.»
    A companhia constrói-se, em seguida, na aceitação. Aceitar, aceitar - que exercício tão difícil. Aceitar a noite o nada, o silêncio e a demora, aceitar a graça e a fraqueza, a diferenciação e o desapego. De tudo fazer caminho. Aceitar ver o todo apenas na parte, na visão incompleta, no gesto inacabado. A ansiedade de dominar é um equívoco. A companhia é outra coisa: é aceitar que tudo é passagem, epifania, revelação que não se toca. E, por fim, a partilha do silêncio. Como é que percebemos que duas pessoas se acompanham? Pela forma como conversam? Certamente. Mas talvez ainda mais pela forma como acolhem o silêncio uma da outra. Entre conhecidos, o silêncio é um embaraço, sentimos imediatamente a necessidade de fazer conversa. Mas quando nos acompanhamos, o silêncio é uma compreensão que une.

PS: Os sublinhados são meus.

Francico Goya, O cão, c. 1819

5 comentários:

P.T. disse...

Que maravilha.

*** disse...

Lindo!

jão disse...

amar é aceitar

Vespinha disse...

Sem dúvida!

lucia disse...

Por acaso já tinha lido este texto e tinha gostado muito!