No domingo passado, o país teve uma surpresa. Mas permitam-me lembrar o contexto que antecipou o abalo. Durante semanas, as sondagens e as conversas tinham-nos levado a uma convicção geral: a coligação PAF ia ganhar com maioria relativa. Repito, a 3 de outubro o que se sabia era o seguinte: muitíssimo provavelmente, ganhava o PAF sem maioria absoluta. Era o que diziam as sondagens - repetidamente alargando a vantagem, mas com limites prudentes - e concordavam os cidadãos, dando conta da campanha de uns, sem percalços e crucifixo no bolso, e a de outros, com Carlos do Carmo a falar. No dia 3, pois, véspera devotada à reflexão do voto, os portugueses reconheciam essa inevitabilidade. Porém, às 20.00, o país foi assombrado: a PAF ganhou e ganhou sem atingir a maioria absoluta!
Hão de concordar que é difícil gerir um país onde acontece o que se espera. Os alentejanos têm aquele provérbio "chuva em novembro, Natal em dezembro", mas suspeito que o que eles, e os portugueses em geral, esperam, mesmo, é a Páscoa. No dia das eleições foi o coelhinho que nos surgiu no presépio. Para espanto de todos que haviam passado as semanas anteriores a dizer exatamente isso. Enfim, logo no dia 4, Passos foi entronizado. Esquecendo-se de que o dia seguinte era 5 de outubro e que há datas que podem tornar-se vingativas, sobretudo quando foram degradadas a não feriado.
Os portugueses vinham de um mandato governamental em que se passou todo o contrário do que se prometera na campanha anterior. Desta vez, a campanha eleitoral tinha indiciado um certo e determinado resultado e foi, pois, com o pasmo nacional que a CNE confirmou que sim, era mesmo esse o resultado. Incrível! O primeiro caso, de não cumprimento das promessas, os portugueses aceitaram com naturalidade. Já no segundo, espantaram-se quando lhes aconteceu aquilo de que estavam carecas de saber que ia acontecer. Ora, entre nós, quando as coisas se passam de forma tão insólita (porque esperada), é natural que descambem em situações cada vez mais naturais. Ou, se quiserem, surpreendentes.
Às primeiras horas, tudo se passou como é costume. Tendo o PSD e o CDS votos para governar relativamente, preparavam-se para governar absolutamente. O primeiro sinal de qualquer coisa de estranho surgiu quando o Presidente Cavaco Silva foi alertado pela sua assessora mais de fiar (uma calculadora Texas Instruments). De 116 deputados para governar de vento à popa, encontraram-se garantidos só 104, aos quais se podia, na melhor das hipóteses, somar os quatro da emigração - 108. Fizeram-se contas e recontas mas dava sempre um défice de oito. Ainda se fosse daquelas contas para volkswagenear o défice orçamental... Mas não, eram cabeças para serem postadas em hemiciclo, filmadas, com bancadas de jornalistas à coca e público a espreitar das galerias - um buraco de oito nota-se.
Em Belém, Cavaco olhou o Tejo, passou uma falua, e esse concurso de circunstâncias - a calculadora mais a vela latina - levou-o a pensar que se não se podia governar com vento à popa, podia-se bolinar, ziguezagueando. Isso levou-o direito à solução: "O PS!!!", explicou ele a Passos Coelho. Cavaco Silva serviu em África, mas só na Universidade de Lourenço Marques, não esteve na savana e não aprendeu a lei n.º 1 do caçador: nunca cutucar uma pacaça ferida. António Costa lambia as feridas de domingo quando foi despertado pela Pátria. Ninguém se sente mais vivinho da Costa do que encontrar, ao sair do bloco operatório, apelos ansiosos de ajuda...
Entretanto, a semana avançava como se um estado de sítio - uma Lei de Murphy à portuguesa, "nada pode ser mais extraordinário por cá do que aquilo que é óbvio lá fora" - tivesse sido imposto a toda política portuguesa. Nada ficou imune, até o PCP. Jerónimo de Sousa, que fora interpelado durante a campanha por um garoto ("quando for grande quero ser primeiro-ministro", disse o menino), começou a pensar que na sua vida, até aí restringida a operário metalúrgico e líder do PC, ainda podia vir a ser político. Essa epifania, acrescentada ao acidente (uma Catarina de olhos azuis atropelou-o no dia 4), levou Jerónimo, já que tinha uns deputados, fazer com eles política. Falou com Costa, o tal revivido, e empurrou-o. "Vai", disse. A semana farta em ação tem tido ainda a vantagem de discursos breves.
Os portugueses, já espantados com os resultados óbvios, surpreendiam-se com as esquisitices que se podem fazer com o adquirido que afinal não é. Por exemplo, ainda ontem, o ganhador sentou-se com o perdedor e pôs cara de póquer. O outro limitou-se a dizer: "Pago para ver." Não viu nada, mas nós vimos que o ganhador teve de dizer: "Para a próxima vou ser mais atrevido." Para a semana há mais.
O que eu quero dizer-vos é que estou a gostar. Políticos a fazer política, nunca esperei.
2 comentários:
Muito, muito bom!!!
E com imenso humor ácido. Brilhante!
Sim, a ironia está fantástica. :)
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