Tão, mas tão boa esta crónica de Tiago Matos Silva publicada esta semana na P3, uma carta dedicada à sua filha quando souber ler. Cheia de recordações e de bons conselhos. Um gesto de amor.
Carta para quando a criança souber ler
Sê feroz, acredites no que que acreditares (mesmo
que seja o meu oposto) acredita orgulhosamente e declara-o ao jantar.
Arruina-me a digestão que somos todos tigres de papel, não me dês o
desgosto duma filha tépida, não admitas quem do nosso amor duvide
Texto de
Tiago Matos Silva •
13/07/2015 - 18:20
Cria minha,
claro que é por seres nossa, mas caguei: és tão única, e mágica como
todas as outras, só é mais evidente porque só nós é que te conhecemos. A
tua jovem tia também tinha uma t-shirt em que mandámos estampar “Não é
por ser deles... mas eu sou linda!”, era verdade para ela, é verdade
para ti.
Já sabia que o belo que dói, o insuportável, o medonho, o sagrado, o
malcheiroso e o sublime se podiam concentrar num só ponto (o Baudelaire,
o Goya e o Beethoven são amigos da casa), mas em menos dum metro e
quinze quilos, por mais que acrescidos a ramelas e macacos do nariz...
nunca tinha visto.
A graça, o mau-feitio e a pele de papel são da tua mãe; o nariz
pequenitates e a gargalhada desbragada da tia Raquel; a compostura e os
primeiros 20 segundos de timidez da tia Marta; a queda para os botões do
tio João; o amor à praia da avó Tété; a sobrancelha e a falsa seriedade
da avó Lena; a sonsice e a escatologia do tio Hugo; o perdão fácil do
avô João; a malandrice gozona do avô Rui; os olhos claros e
astigmáticos, o seres torta para além do necessário e a alegria da
música deste teu paizinho; no resto és a titi Inês. Desenhamos-te como
um composto de antepassados porque é assim que os pobres, sem
genealogia, se propagam no tempo.
Antes de ti só havia o amor. Eu e a tua mãe cruzámo-nos numa sala
escura a ler papéis na parede: ela armada em dura, eu meio desgrenhado,
cara de bebé. Fizemo-nos amigos, radicais, um matava outro esfolava,
expulsos juntos pelo professor de Economia Aplicada, sempre sentadinhos
com ar de sonsos na barricada, sem esforço, sempre colados a brigar, a
chamarmo-nos nomes feios, a deitar a língua de fora um ao outro, a
discordar sobre tudo o que não é essencial.
Depois ela foi a primeira a fazer-me rir após a morte do teu bisavô,
gargalhei no anfiteatro (expulso sozinho dessa vez) e soube que a ia
carregar o resto da existência. Numa esplanada longe percebemos como ia
ser, fotografámos o momento cada um com sua máquina, a tua mãe
primorosamente a preto-e-branco, grande plano ao cabelo preso na nuca,
eu de boina à contraluz, ar preocupado; ainda nos podes ver na coluna da
sala, cinco molduras acima da televisão.
Andámos e andámos e cá viemos para casa. Tínhamos um colchão e duas
cadeiras de lona, um tijolo para a música, a tv em cima do caixote da tv
e pilhas de livros roubados aos teus avós. Muito frio rapámos no
primeiro Inverno, a tua mãe varria de sobretudo e eu colava papelinhos
nas paredes. Veio a bonança e a borrasca, vieram os gatos e vieste tu,
veio França e o regresso, e foi tudo intensamente desejado e ainda mais
intensamente vivido. E tu mais do que tudo.
Sê feroz, acredites no que que acreditares (mesmo que seja o meu
oposto) acredita orgulhosamente e declara-o ao jantar. Arruina-me a
digestão que somos todos tigres de papel, não me dês o desgosto duma
filha tépida, não admitas quem do nosso amor duvide.
Frui a família, a da genética e a que achares no mundo. Honra-a sendo
tu mesma, lembra-te que quem não te quer não te merece. O tempo peneira
tudo e o amor brilha no meio da gravilha como ouro em prato de
garimpeiro.
Sê gentil mais do que bem-educada. Boa-educação é para meninas mas
firmeza com os fracos é coisa de tirano. Calar e morder a língua às
vezes é preciso, vais saber quando é preciso gritar, e nessa altura:
grita!
Não mistures cerveja com vinho, não te metas com os bichos quando
eles estão a comer, não fujas à polícia a não ser que tenhas uma
hipótese muito certa de te safares, a ressaca limpa-se com água e se um
tipo te agarrar a mal: joelhada nos tomates.
Finalmente, não tenhas medo do mergulho na dor, amar é um risco tão
mais saboroso quão consciente. Dar o flanco à poesia é o único sal que
mordemos no fim, e crê que amar é sofrer. Amar é sempre sofrer... e vale
sempre a pena.
Com um beijo do teu pai,