Texto de António Cândido (1917-2018), um dos maiores intelectuais brasileiros, sobre o lamento da sua biblioteca aquando da sua morte.
O pranto dos livros
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Biblioteca e escritório de António Cândido na sala do seu apartamento em São Paulo. |
Morto, fechado no caixão, espero a vez de ser cremado. O mundo não existe
mais para mim, mas continua sem mim. O tempo não se altera por causa da
minha morte, as pessoas continuam a trabalhar e a passear, os amigos
misturam alguma tristeza com as preocupações da hora e lembram de mim
apenas por intervalos. Quando um encontra o outro começa o ritual do «veja só», «que pena», «ele estava bem quando o vi a última vez», «também, já tinha idade», «enfim, é o destino de todos».
Os jornais darão notícias misturadas de acertos e erros e haverá
informações desencontradas, inclusive dúvida quanto à naturalidade. Era
mineiro? Era carioca? Era paulista? É verdade que estudou na França? Ou
foi na Suíça? O pai era rico? Publicou muitos livros de pequena tiragem,
na maioria esgotados. Teve importância como crítico durante alguns
anos, mas estava superado havia tempo. Inclusive por seus ex-assistentes
Fulano e Beltrano. Os alunos gostavam das aulas dele, porque tinha
dotes de comunicador. Mas o que tinha de mais saliente era certa
amenidade de convívio, pois sabia ser agradável com pobres e ricos.
Isso, quando se conseguia encontrá-lo, porque era esquivo e preferia
ficar só, principalmente mais para o fim da vida. Uns dizem que era
estrangeirado, outros, que pecava por nacionalismo. Era de esquerda, mas
meio incoerente e tolerante demais. Militava pouco e no PT funcionou
sobretudo como medalhão. Aliás, há quem diga que teve jeito de medalhão
desde moço. Muito convencional. Mas é verdade que fugia da publicidade,
recusava prêmios e medalhas quando podia e não gostava de homenagens.
Contraditório, como toda a gente. O fato é que havia em torno dele muita
onda, e chegou-se a inventar que era uma «unanimidade nacional». No
entanto, foi sempre atacado, em artigos, livros, declarações, e contra
ele havia setores de má vontade, como é normal. Enfim, morreu. Já não
era sem tempo e que a terra lhe seja leve.
Mas o que foi leve não foi a terra pesada, estímulo dos devaneios da
vontade. Foi o fogo sutil, levíssimo, que consumiu a minha roupa, a
minha calva, os meus sapatos, as minhas carnes insossas e os meus ossos
frágeis. Graças a ele fui virando rapidamente cinza, posta a seguir num
saquinho de plástico com o meu nome, a data da morte e a da cremação.
Enquanto isso, havia outros seres que pensavam em mim com uma tristeza
de amigos mudos: os livros.
De vários cantos, de vários modos, a minha carcaça que evitou a
decomposição por meio da combustão suscita o pesar dos milhares de
livros que foram meus e de meus pais, que conheciam o tato da minha mão,
o cuidado do meu zelo, a atenção com que os limpava, mudava de lugar,
encadernava, folheava, doava em blocos para serviço de outros. Livros
que ficavam em nossa casa ou se espalhavam pelo mundo, na Faculdade de
Poços, na de Araraquara, na Católica do Rio, na Unicamp, na USP, na Casa
de Cultura de Santa Rita, na ex-Economia e Humanismo, além dos que
foram furtados e sabe Deus onde estão – todos sentindo pena do amigo se
desfazer em mero pó e lembrando os tempos em que viviam com ele, anos e
anos a fio. Então, dos recantos onde estão, em estantes de ferro e de
madeira, fechadas ou abertas, bem ou maltratados, usados ou esquecidos,
eles hão de chorar lágrimas invisíveis de papel e de tinta, de
cartonagem e percalina, de couro de porco e pelica, de couro da Rússia e
marroquim, de pergaminho e pano. Será o pranto mudo dos livros pelo
amigo pulverizado que os amou desde menino, que passou a vida tratando
deles, escolhendo para eles o lugar certo, removendo-os, defendendo-os
dos bichos e até os lendo. Não todos, porque uma vida não bastaria para
isso e muitos estavam além da sua compreensão; mas milhares deles. Na
verdade, ele os queria mais do que como simples leitura. Queria-os como
esperança de saber, como companhia, como vista alegre, como pano de
fundo da vida precária e sempre aquém. Por isso, porque os recolheu pelo
que eram, os livros choram o amigo que atrasava pagamentos de aluguel
para comprá-los, que roubava horas ao trabalho para procurá-los, onde
quer que fosse: nas livrarias pequenas e grandes de Araraquara ou
Catanduva, de Blumenau ou João Pessoa, de Nova York ou New Haven; nos
sebos de São Paulo, do Rio, de Porto Alegre; nos buquinistas de Paris e
nos alfarrabistas de Lisboa, por toda a parte onde houvesse papel
impresso à venda. O amigo que, não sendo Fênix, não renascerá das cinzas
a que está sendo reduzido, ao contrário deles, que de algum modo
viverão para sempre.